Atlas Shrugged invertido – shutdown forçado pelos governos

By | March 30, 2020

Atlas Shrugged invertido – shutdown forçado pelos governos.
Alguns pensamentos de refugiado no campo, atravessando os montes que Miguel Torga calcorreava para manter a lucidez, tentando manter também a minha.

“A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez”, escreveu Torga, no dia 1 de Maio de 1974, poucos dias após o 25 de Abril, no seu Diário.
Com esta frase concluiu estas notas sobre o dia:
“Colossal cortejo pelas ruas da cidade. Uma explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças de repressão remetidas aos quartéis…
Segui o caudal humano, calado, a ouvir vivas e morras, travado por não sei que incerteza, sem poder vibrar com o entusiasmo que me rodeava, na recôndita e vã esperança de ser contagiado. Há horas que são de todos. Porque não havia aquela de ser também minha? Mas não. Dentro de mim ressoava apenas uma pergunta: Em que oceano de bom senso iria desaguar aquele delírio? Que oculta e avisada abnegação estaria pronta para guiar no caminho da história a cegueira daquela confiança? A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez”

Estava ainda fresca a celebração da liberdade, e Torga, refém da lucidez, desconfiava já do entusiasmo da maioria.
Hoje, sinto estas palavras de forma intensa. Por começar a perder a esperança em que a liberdade que conhecemos volte em breve e que tudo volte a ser como antes.

O podcast do Tom Woods Show, em que conversa com os economistas Joseph Salerno e Peter Klein, intitulado “The Economics of the Shutdown“, instigou-me a escrever este post. Deu-me algumas ideias que me permitiram estruturar melhor o meu pensamento sobre um tema que me anda a inquietar – as consequências do grave período que vivemos na economia e na liberdade.
Deixo de parte quaisquer previsões quantitativas, que ficam para os macro-economistas.
Recomendo vivamente este podcast, de que deixo aqui o link:
https://tomwoods.com/ep-1620-the-economics-of-the-shutdown/

Economia do Shutdown
Fico apreensivo ao ver burocratas acharem que podem definir o que são sectores essenciais e estratégicos. Só vêm a camada superficial, pouco abaixo da fase em que o bem ou serviço é disponibilizado. Não conhecem (ninguém consegue conhecer) as ramificações e interpenetrações da especialização da oferta, sempre em mudança.
Mesmo a definição de “bens essenciais” é simplista. O que vemos e que nos parece um “bem essencial” é só a ponta de um iceberg necessário para que o mesmo nos seja disponibilizado. Redes dinâmicas de especializações em bens intermédios a diversos níveis, incluindo bens de capital necessários para a capacidade produtiva. Tudo regulado pelo mecanismo do preço.
Quem conhece a parábola da esferográfica, de Milton Friedman, compreende a ideia. E se, por hipótese, a esferográfica fosse um “bem essencial”, estaria longe de ser dos mais complexos.

O problema que vivemos agora, com a imposição de distanciamento e confinamento, não é de agregados de procura / oferta mas de mudanças nas suas composições. A visão agregada keynesiana ou monetarista não acomoda isto.
Não são estimulos keynesianos que podem resolver estes problemas, pelo que temo que os remédios que implantem podem vir a fazer mais mal que bem. No curtissimo prazo, a economia pode funcionar. Mas a prazo, esgotando-se os stocks de bens intermédios, e surgindo necessidades de reposição de bens de capital, os gaps da capacidade de oferta, que se está a perder, limitarão a oferta, mesmo dos “bens essenciais”.

Para os consumidores, os preços relativos vão ter de se reajustar. As coisas não serão as mesmas depois desta crise, sobretudo se este estado de shutdown se prolongar e destruir activos produtivos (materiais e, sobretudo, intangíveis – organizacionais e de capital humano).
Entregar dinheiro às pessoas em casa também não resolve a crise da oferta. Pode ajudar a pagar dívidas, e a substituir os rendimentos de uns poucos meses, mas não mais que isso.

Muitos negócios vão desaparecer – sobretudo microempresas e negócios que sustentam muitas famílias.
O turismo, que sustentou a economia portuguesa dos úlrimos anos, vai cair a pique, atrás deste, o imobiliário.
Muitas famílias vão perder a sua fonte de rendimentos.
Outros, continuarão a receber os seus salários, fiquem em casa ou vão para o trabalho. Funcionários do Estado e das grandes empresas protegidas ou de bens essenciais.
A desigualdade, que já se verificou na crise de 2011, vai ser ainda mais acentuada.

Muitas falências vão ser inevitáveis. O que me preocupa nestas falências não é que os activos produtivos se percam. Muitos vão mudar de pproprietário e reestruturar-se. Mas podemos esperar mais destruição do “capital nacional”. Num país completamente descapitalizado e sem poupança, serão de esperar mais vendas de activos ao desbarato, tal como na crise de 2011.

Se o governo decidir intervir nos preços o cenário ainda será pior. Como alguns previram há décadas, a destruição da economia de mercado começa pelo controlo do dinheiro e do mecanismo de preços.

Como diz o economista e investidor Peter Schiff, o coronavirus é só o alfinete que vai espetar o balão / bolha de dívida real e fictícia. Mas vão aproveitar para o culpar de tudo, todo o lixo que está dentro do balão vai ser atribuido ao alfinete.

Não consigo deixar de ser assaltado por uma visão distópica do “new normal”.
Governo, Parlamento, Banco Central vão passar a dispôr de novos instrumentos de comando central e as pessoas aceitam-nos devido à situação de emergência. Ora uma vez obtido o poder, a tentação de o manter é quase irresistível.

A emissão de dinheiro para entregar directamente às pessoas começa a ser aceite por muitos. Uma vez activado o mecanismo, o seu uso pode passar a ser considerado normal, as pessoas podem passar a esperar isto de cada vez que apareça uma crise – real ou imaginária. E imaginação para as “inventar” não falta.
Criam-se novos dependentes, que votam e capturam o estado para o seu interesse próprio.

Temo que isto passe a ser o “new normal”, como aconteceu com as medidas de segurança nos aeroportos pós 9/11.
Os actuais adolescentes cresceram nisto, não sabem como era antes. Para eles sempre foi preciso passar pelos scanners, tirar os cintos e sapatos. Entretanto, muitas das medidas securitárias que foram então impostas, mantiveram-se.
A tomada de temperatura ao entrar num edificio publico, fará parte do new normal? O governo a controlar o movimento das pessoas? Segue-se a monitorização remota dos nossos dados vitais?
Bastaria um pequeno passo para depois tentar controlar a alocação de recursos e a divisão do trabalho.

O modelo de “surveillance state” aplicado na China parece estar a ganhar adeptos. É muito preocupante.
Muitos aceitarão estas medidas como inevitáveis e só quererão discutir os detalhes. Não! Os detalhes são só o rearranjar das cadeiras no convés do Titanic (crédito a Joe Salerno pela metáfora).

Pela primeira vez desde há muitas décadas sinto-me tomado por sentimentos anti-fascistas – ou anti-socialistas que, nisto, vão dar ao mesmo.
Os que prezamos a liberdade, temos de estar vigilantes.

Termino citando Benjamin Franklin (sei que frase foi originalmente dita noutro contexto, mas tem sido adoptada nestas situações) :
“Any society that would give up a little liberty to gain a little security will deserve neither and lose both.”

E com esta notável interpretação dos músicos da Filarmónica de Roterdão, confinados, da Ode á Liberdade:

ADENDA: o leader da última edição do The Economist aborda estas questões de forma brilhante.
O melhor editorial que me recordo de ter lido. O The Economist reconquistou o meu apreço, que tinha perdido durante anos. Tem outros artigos excelentes para entendermos os impactos esta crise. É nestes momentos que se vê quem verdadeiramente preza a liberdade como valor principal.
The state in the time of covid-19 – Big government is needed to fight the pandemic. What matters is how it shrinks back again afterwards”
https://www.economist.com/leaders/2020/03/26/the-state-in-the-time-of-covid-19
https://www.youtube.com/watch?time_continue=25&v=1HzGxOqeEDY&feature=emb_logo