Alguns liberais vêm um eventual aprofundamento da integração europeia como contrário aos ideais liberais. Ora, eu acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mais, para Portugal, o facto de participar na construção europeia facilita o liberalismo, ou, melhor dizendo, coloca travões ao intervencionismo estatal.
A Europa tanto pode ser liberal, como não ser. Uma analogia: o governo federal alemão pode ser, tanto ou mais, liberal, que cada um dos seus estados; ou não. A geometria do poder — local, regional, nacional, estadual, federal, supranacional — é uma questão de distribuição desse mesmo “poder”. Tanto pode ser muito rígido ou muito flexível. Em princípio, quanto mais locais forem os poderes, mais dentro estariam do espírito liberal (subsidariedade).
Mas, por hipótese, um poder central mais leve, não intervencionista e estabelecendo regras de concorrência de mercado, seria mais facilitador do liberalismo que um poder nacional fortemente intervencionista. O caso português é exemplo disso. A verdade, para nós portugueses, é que as instituições europeias são muito mais liberais (ou, se preferirmos, menos iliberais) do que as instituições portuguesas. Estas, para nosso mal, são das mais iliberais a nível europeu. Quando transpomos directivas comunitárias, aplicamos-lhes a nossa overdose de burocracia, tornando-as rígidas — veja-se a ASAE e os inúmeros licenciamentos que nos são impostos (energéticos, acústicos, higiene, etc…) e que alimentam um ecosistema de certificadores e inspectores, bem como a discricionariedade dos burocratas oficiais.
Ora, não é assim em muitos outros países europeus (ou mesmo na grande maioria deles). É possível, e viável, a existência, na mesma Europa, de regimes muito mais liberais, como são os casos da Irlanda, Estónia, Rep. Checa, Holanda, etc. – practicamente, todos os nossos parceiros europeus.
Portugal é um país iliberal e estatista. Não por culpa da “Europa”, mas sim dos portugueses, das nossas instituições, e da forma como votamos. Somos um país onde, na opinião publicada, a palavra liberal (a que se apende sempre um”neo”) é um insulto, quase ao nível de fascista. Não conheço país na Europa onde isto seja assim.
Mais, cumpre realçar que foram algumas directrizes e tratados europeus que nos obrigaram a desfazer diversas oligarquias e cartéis. Na época da torika, foram as instituições que nos obrigaram a abrir mercados e a privatizar. Sem a Europa, Portugal seria ainda muito mais iliberal e estatista.Só temos de nos queixar de nós.
Quanto à soberania, e à subsidariedade, grande parte das regiões de Portugal sofrem muito mais com o centralismo dos poderes concentrados na Capital da República, do que com Bruxelas. Até os fundos de coesão que vêm da UE, destinados a regiões portuguesas desfavorecidas, são desviados pelo governo da República Portuguesa, segundo critérios centralistas — muitas vezes indo, precisamente, contra as regras de Bruxelas. Um cidadão de Vila Real ou de Bragança, é muito mais prejudicado pelas decisões de Lisboa do que pelas de Bruxelas ou de Frankfurt. Isto também é profundamente iliberal, para além de injustificável por qualquer padrão de justiça.
O próprio Hayek, no seu ensaio “The Economic Conditions of Interstate Federalism” defendeu uma forma de federalismo europeu liberal. Uma das vantagens que ele via, era o estabelecimento de limites a arbitrariedades e proteccionismos a nível dos estados. Link:
A principal conclusão, citando Hayek:“… in a federation these powers could not be left to the national states; therefore, federation would appear to mean that neither government could have powers for socialist planning of economic life…The conclusion that, in a federation, certain economic powers, which are now generally wielded by the national states, could be exercised neither by the federation nor by the individual states, implies that there would have to be less government all round if federation is to be practicable. Certain forms of economic policy will have to be conducted by the federation or by nobody at all…”
Muitos insurgem-se contra o “garrote” provocado pela modea única, o Euro. Apesar de o Euro não ser uma construção isenta de falhas é muito melhor, de um ponto de vista liberal, que o escudo. Estamos melhor com uma moeda forte, gerida por uma entidade tecnocrata relativamente imune a pressões políticas, do que com uma moeda “nacional” sujeita às arbitrariedades dos governantes — o nacionalismo monetário. Isto, apesar dos recentes desvios do BCE em resposta à crise da dívida soberana — mesmo assim, não piores do que aresposta que a Fed americana deu.
O eminente economista da escola austríaca Huerta de Soto, defende o Euro, por estes memso motivos — no caso dele, face à peseta que padecia do mesmo mal do escudo. Chama ao Euro um “proxy do padrão ouro”.
https://mises.org/library/austrian-defense-euro
Notas finais:
Para quem acha que a Europa dirige por diktats, recomendo este excepcional documentário da BBC sobre a crise de refugiados de 2015. Ouve os diversos protagonistas da UE — Juncker, Tusk, Merkel, Renzi, Hollande, Orban, Rutte, Tsipras, etc… É muito curioso o embate entre as posições distintas de Tusk e de Juncker — eles falam abertamente das suas diferenças nas entrevistas.A UE é feita de negociação permanente, de encontrar um ponto de consenso mínimo entre pontos de vista distintos. Para mim, é bastante tranquilizador, como mecanismo de prevenção contra grandes disparates.
É também feita de negociação, em bloco, mais forte que cada um por si, com entidades externas, como a Turquia.
Link para vídeo no dailymotion — qualidade e ligação pobres:
https://www.dailymotion.com/video/x7298pj
O site da BBC só está acessível para IPs no RU — quem tiver VPN, pode ver aí.
Num registo pessoal, considero que a participação de Portugal na construção europeia é uma importante defesa, frente ao estatismo e irresponsabilidade do nosso regime político. E, também uma defesa da sanidade monetária.
Não quero voltar aos tempos do escudo. Estou feliz por poder ter as minhas poupanças em euros, sem me preocupar com restrições de movimentos de capitais, nem risco de desvalorização. Também estou feliz por poder circular livremente sem passaporte pela Europa. E por os meus filhos poderem circular livremente e estudar em universidades europeias, sem terem de pedir autorizações de residência, nem de transferência de divisas, como eu tive de fazer nos anos ’80. Recordo ter de ir do Porto a Lisboa para tratar do processo de autorização de divisas no Banco de Portugal, onde parecia que mes estavam a fazer um favor.
E também estou feliz por poder comprar os bens que quero, sem restrições à importação. Fazer investimentos no estrangeiro, sem necessitar de autorização.
Não quero que isso se perca, por sonhos irresponsáveis de soberanias nacionais, muito menos monetárias. Na crise da Grécia, país que conheço bem por razões familiares e onde tenho amigos, vi o que era haver cidadãos do euro de primeira e de segunda, durante a crise. Com os segundos, locais, a sofrerem limites ao levantamento de dinheiro. Por isso, tenho consciência que este “conforto” europeu não é um dado adquirido. Podemos perdê-lo se não o defendermos. É importante transmitir esta mensagem às novas gerações, para quem esta Europa livre é um facto adquirido, e assim conseguir mobilizá-las.Também não podemos esquecer a questão identitária e cultural do judaico-cristianismo, da reforma, da democracia liberal, que são a marca da Europa. Recordo-me de viajar pela Ásia (China, Vietname, Indonésia, Sri Lanka, etc) há algumas décadas e quando via europeus, davamo-nos conta do quão próximos somos culturalmente, quando comparados com vietnamitas, malaios, ou chineses.
Em conclusão, não estando a construção europeia (consubstanciada na UE e no Euro) isenta de erros, é muito positiva para Portugal. Estariamos muito pior fora dela — teriamos uma sociedade menos livre e uma economia mais pobre, mais intervencionada e muito menos liberal.