Os superspreading events e a propagação do coronavirus

By | April 5, 2020

Os superspreading events e a propagação do coronavirus – porque não começar com medidas preventivas destes eventos antes de usar logo a bazuca do confinamento geral?

Muitos surtos de coronavirus, em diversos locais, resultaram de eventos especiais, que reuniram muitas pessoas – o que os epidemiologistas designam de “superspreading events” (SSE). Pelos dados que vamos tendo, parece provável que o “achatamento da curva” da epidemia poderia ser conseguido, em grande medida, com interdição destes eventos. Provavelmente têm um efeito muito maior na travagem da propagação do que o confinamento geral. E os custos para a economia seriam incomensuravelmente menores.

Comecei a tentar coleccionar evidência empírica sobre SSE, de que se tem ouvido nos media, mas sem que estes os analisem e tirem conclusões. Conhecia os da Coreia, Bergamo e Madrid, mas há muitos mais. Abaixo, coloco uma lista de SSE, que obtive com recurso ao google search, que certamente está longe de ser exaustiva. Em muitos casos, estes eventos foram tratados na imprensa local. Julgo que seria interessante fazer uma análise do impacto destes eventos na propagação das infecções – mesmo sem recurso a ferramentas sofisticadas de “tracing” que a Coreia do Sul empregou.

Olhei para os modelos epidemiológicos que têm sido usados para justificar as medidas de confinamento, nomeadamente o famoso estudo do Imperial College, que terá contribuido para reversão da política do Reino Unido. Vi alguns estudos científicos que foram realizados após a crise SARS em 2003. Verifiquei que os modelos adoptam uma taxa de reprodução R(0) média, sem distinguir entre SSE e a propagação normal que ocorre pela vida di dia a dia em sociedade. Isso despreza o efeito dos SSE que não se produzem homogeneamente. Ocorrem com irregularidade temporal e geográfica. Ora, a questão que deixo é se a simples interdição de SSE não seria suficiente para atingirmos os objectivos de contenção da epidemia.

Não pretendo saber mais do que sei, apenas procuro aplicar pensamento crítico e análise objectiva (vícios meus) para colocar questões face ao “pensamento único” do confinamento a qualquer custo. Aprecio imenso o contraditório, mas baseado factos e em análise crítica.

Ficaria satisfeito se quem entende mais de epidemiologia pudesse explicar estas questões.

Exemplos de Superpreading Events.

Bergamo e Milão: jogo de futebol da Champions League Atalanta-Valência a 19/02; 2ª mão em Valência, em 10/03 (à porta fechada, mas com festejos em Bergamo). ‘A biological bomb’: Champions League match in Italy linked to epicentre of coronavirus outbreak https://www.independent.co.uk/news/world/coronavirus-italy-champions-league-atlanta-valencia-milan-bergamo-a9426616.html

Madrid: marcha feminista 8-M com 120.000 participantes, e o congresso do Vox, con 9.000 pessoas num recinto fechado, em 07/03.
“Las marchas del 8-M se celebraron en contra del criterio de la agencia europea”
https://elpais.com/sociedad/2020-03-12/las-marchas-del-8-m-se-celebraron-en-contra-del-criterio-de-la-agencia-europea.html

Coreia do Sul: 18/02, uma mulher, identificada como paciente 31, participa numa missa na Shincheonji Church of Jesus, infectando outros. Dado o sistema de rastreamento da Coreia, foi possível reconstruir a cadeia de propagação. Passado um mês, esse evento está na origem de 5.080 infectados, mais de metade do total do país. “How a South Korean church helped fuel the spread of the coronavirus” https://www.washingtonpost.com/graphics/2020/world/coronavirus-south-korea-church/
‘Patient 31’ and South Korea’s sudden spike in coronavirus cases” https://www.aljazeera.com/news/2020/03/31-south-korea-sudden-spike-coronavirus-cases-200303065953841.html

New Orleans: Celebrações do Mardi Gras.
“New Orleans coronavirus cases surge amid fears Mardi Gras fuelled spread – Celebrations described as ‘perfect storm’ for Covid-19 to spread”
https://www.telegraph.co.uk/news/2020/03/27/new-orleans-coronavirus-cases-surge-amid-fears-mardi-gras-fuelled/

Mulhouse, França: Congregação de evangélicos, esteve na origem de, pelo menos 2.500 infectados, que se espalharam para outros países.
“Special Report: Five days of worship that set a virus time bomb in France”
https://uk.reuters.com/article/us-health-coronavirus-france-church-spec/special-report-five-days-of-worship-that-set-a-virus-time-bomb-in-france-idUKKBN21H0Q2

Albany, Georgia. Funeral com 200 pessoas numa capela, em 29/02 “Days After a Funeral in a Georgia Town, Coronavirus ‘Hit Like a Bomb’” https://www.nytimes.com/2020/03/30/us/coronavirus-funeral-albany-georgia.html

Ensaio do coro da Mount Vernon Presbyterian Church, em 10/03. “Washington choir rehearsal linked to coronavirus outbreak after dozens of members fall ill, 2 die”
https://www.foxnews.com/us/washington-choir-rehearsal-coronavirus-outbreak

“Pentecostal church in Sacramento linked to dozens of coronavirus cases” https://www.latimes.com/california/story/2020-04-02/pentecostal-church-in-sacramento-linked-to-dozens-of-coronavirus-cases

“Super-Spreading Event In Washington Suggests Coronavirus Is Airborne Without Coughs or Sneezes”
https://sfist.com/2020/03/30/super-spreading-event-in-washington-suggests-coronavirus-is-airborne-without-coughs-or-sneezes/

“’Unpredictable:’ Super-spreading events linked to COVID-19 across the country”
https://www.msn.com/en-ca/news/canada/unpredictable-super-spreading-events-linked-to-covid-19-across-the-country/ar-BB123YBQ

Estudos cientícos sobre SSE

Fiz também uma pequena pesquisa de estudos sobre SSE e encontrei três interessantes. Dois referem-se ao SARS de 2003, e levamtam a questão do impacto de SSE:

1. “Superspreading and the Effect of Individual Variation on Disease Emergence” https://www.researchgate.net/publication/7476817_Superspreading_and_the_Effect_of_Individual_Variation_on_Disease_Emergence
Neste estudo científico de 2005, sobre a epidemia do SARS, os autores (todos académicos da Universidade da Califórnia – Berkeley, Davis e LA) abordam o efeito dos superspreading events (SSE). Referem que os modelos epidemiológicos tradicionais adoptam uma taxa de reprodução R(0) média, mas que isso despreza os SSE que não se produzem homogeneamente. Ocorrem com irregularidade temporal e geográfica. Concluem que se deveria estudar os factores que conduzem aos SSE. E que, nos modelos, sse deveria separar o R(0) da população geral do efeito dos SSE.
Algumas passagens:
“Population-level analyses often use average quantities to describe heterogeneous systems, particularly when variation does not arise from identifiable groups.

Population estimates of R(0) can obscure considerable individual variation in infectiousness, as highlighted during the global emergence of severe acute respiratory syndrome (SARS) by numerous ‘superspreading events’ in which certain individuals infected unusually large numbers of secondary cases. For diseases transmitted by non-sexual direct contacts, such as SARS or smallpox, individual variation is difficult to measure empirically, and thus its importance for outbreak dynamics has been unclear.

Model predictions accounting for this variation differ sharply from average-based approaches, with disease extinction more likely and outbreaks rarer but more explosive. Using these models, we explore implications for outbreak control, showing that individual-specific control measures outperform population-wide measures. Moreover, the dramatic improvements achieved through targeted control policies emphasize the need to identify predictive correlates of higher infectiousness. Our findings indicate that superspreading is a normal feature of disease spread, and to frame ongoing discussion we propose a rigorous definition for superspreading events and a method to predict their frequency.”

2. “Identifying and Interrupting Superspreading Events—Implications for Control of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2″ https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/26/6/20-0495_article
Também este paper de 2004, sobre o SARS, aborda os SSE. Não do ponto de vista dos modelos, mas da prática hospitalar. Concluem:
“… the absence of a superspreading event was likely the dominant factor influencing which countries were spared epidemic spread.
… the global experience with SARS in 2003 demonstrated that a single superspreading event can initiate a cascade of events that is difficult to interrupt.” (Ver Quadro com o impacto de um só evento, em Beijing 2003)

3. “Identifying and Interrupting Superspreading Events—Implications for Control of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/26/6/20-0495_article
Este artigo muito recente, publicado pelo organismo oficial americano CDC, começa a levantar a questão dos SSE
“…Although we still have limited information on the epidemiology of this virus, there have been multiple reports of superspreading events (SSEs), which are associated with both explosive growth early in an outbreak and sustained transmission in later stages. Although SSEs appear to be difficult to predict and therefore difficult to prevent, core public health actions can prevent and reduce the number and impact of SSEs. To prevent and control of SSEs, speed is essential. Prevention and mitigation of SSEs depends, first and foremost, on quickly recognizing and understanding these events, particularly within healthcare settings. Better understanding transmission dynamics associated with SSEs, identifying and mitigating high-risk settings, strict adherence to healthcare infection prevention and control measures, and timely implementation of nonpharmaceutical interventions can help prevent and control severe acute respiratory syndrome coronavirus 2, as well as future infectious disease outbreaks.”

Esperemos que tirem conclusões com rapidez e possam rever a política de confinamento, para aliviando o lockdown que está a matar a economia e consequentemente a “vida” (social, económica, de rendimentos, escolar, familiar) de muita gente.

UPDATE: Seguindo a comparação da Suécia com Portugal, que levantei neste post de ontem: https://www.facebook.com/gastao.taveira/posts/10157597156884081
Hoje, a epidemia teve uma evolução mais lenta, tanto em Portugal, como na Suécia. O curioso é que a evolução na Suécia foi ainda mais favorável que em Portugal, não obstante aquele país não ter adoptado políticas de confinamento generalizadas – só proibem eventos de mais de 50 pessoas (SSE potenciais) e as universidades funcionam em regime remoto. Escolas, bares e restaurantes continuam abertos.

Resumo do dia 20200404:
Novos casos – PT: 863; SW: 312 (provavelmente a Suécia estaá a testar menos; mas a tendência da curva é que é interessante).
Mortes – PT: 20; SW: 15 (ambos melhores que ontem, embora na Suécia a tendência de melhoria seja mais continuada e acentuada).

Resumo do dia 20200405:
Novos casos – PT: 754; SW: 387
Mortes – PT: 29; SW: 28