Uma brilhante crónica sobre a catástrofe que não o foi, e a calamidade causada pelo medo dela.

By | April 28, 2020

Uma brilhante crónica de Tiago Tribolet de Abreu, no Observador, sobre a catástrofe que não veio, e a calamidade bem real causada pelos preparativos para aquela.

Cito:

“No meu hospital, público, mantêm-se encerradas as consultas e exames e continuamos com enfermarias e UCIs vazias ou quase, à espera de uma enchente de doentes com Covid que não vêm. Por quanto tempo?”

“E proponho que todos os intervenientes na proposta e decisão de Medidas de Contenção e Mitigação fiquem também com redução ou ausência de rendimento durante a vigência das mesmas.
Talvez assim passemos todos a olhar para os dois pratos da Balança de forma mais equilibrada.”

https://observador.pt/opiniao/a-balanca/

Excerptos:

Esta doença não afecta todos de forma justa ou equilibrada. Refiro-me ao facto de haver pessoas que, apesar das Medidas, mantém o seu rendimento intacto, umas trabalhando o mesmo ou mais ainda do que previamente, e outras trabalhando menos ou nada mesmo. E de haver pessoas que perderam todo o seu rendimento. Pessoas para quem o ordenado do mês de Março foi o último que receberam com normalidade (para algumas, nem esse foi já normal). Pessoas para quem a manutenção das Medidas (e sua recorrente renovação) implicará a perda do seu rendimento e do seu posto de trabalho. Isto não é Balança. Não é justiça nem equilíbrio.

E penso também no problema das Medidas serem propostas e implementadas por pessoas que não têm o seu emprego ou o seu salário ameaçados.Considerando novamente a Balança de dois pratos, com os efeitos benéficos das Medidas num deles, e os efeitos adversos no outro, com que equilíbrio olhará para esses pratos quem as propõe e decide? Qual é a imparcialidade da Directora-Geral da DGS e dos seus técnicos? Têm o seu rendimento em risco? São pessoas que estudam e analisam as consequências económicas, sociais e mentais das Medidas que propõem

Tenho propostas.

Proponho que se mantenha a protecção das pessoas com mais de 70 anos, visto ser nessa população que a taxa de mortalidade é mais elevada. E proponho que toda a restante população, com menos de 70 anos, retome a sua actividade habitual, com uso obrigatório de máscara sempre que possa existir contacto a menos de dois metros com outros (para protecção dos outros, e não do próprio, entenda-se)…

Mas proponho outras coisas.
Que quem opte por não retomar a sua actividade habitual que o possa fazer. Mas que fique com o seu rendimento reduzido.

E proponho que todos os intervenientes na proposta e decisão de Medidas de Contenção e Mitigação fiquem também com redução ou ausência de rendimento durante a vigência das mesmas.
Talvez assim passemos todos a olhar para os dois pratos da Balança de forma mais equilibrada.

… sugiro que prestemos atenção ao parâmetro que me parece mais fiável de todos: o número de doentes internados em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) com Covid-19.
Actualmente, todos os doentes admitidos numa UCI são testados para a doença. E um doente que necessite de UCI tem mesmo de ir para lá. E é por isso que considero que é este o dado a observar com atenção.

Encerrámos consultas e exames, já agendados e por agendar. Realocámos médicos e enfermeiros, de serviços e tarefas onde cumpriam a sua missão, para locais e missões diferentes.

Doentes com seguimento, tratamentos e exames programados foram informados da anulação desses cuidados. Só se manteria o “inadiável”. E o que é que é “inadiável”, se não há consultas nem exames que nos permitam sabê-lo?

Enfermarias foram esvaziadas de doentes, blocos operatórios encerrados, unidades de cuidados intensivos ampliadas, material oferecido e adquirido, pessoal contratado.Com enfermarias e UCIs à espera de doentes que não vieram. E mantendo encerradas as actividades e cuidados a doentes que já existem e continuarão a existir. A não ser que, subitamente, deixem de ser inadiáveis, porque nada há já para adiar.

No meu hospital, público, mantêm-se encerradas as consultas e exames e continuamos com enfermarias e UCIs vazias ou quase, à espera de uma enchente de doentes com Covid que não vêm. À custa de outros doentes, estes sim já existentes, que vêem adiados sem prazo os seus cuidados, enquanto as suas doenças (que não querem saber do Covid nem do Estado de Emergência para nada), continuam a sua progressão inexorável. Não vale a pena a hipocrisia da preocupação manifestada pela Directora Geral da DGS para com os doentes que adiam os seus cuidados, se foram as próprias recomendações da DGS que permitiram e incentivaram todos estes encerramentos de actividade.

Devíamos dançar conforme a música. Ter planos de alteração de actividade e de re-alocação de locais e de profissionais conforme a evolução dos casos. E não antes deles sequer existirem. Mas se a música não toca como pensámos e temíamos que iria tocar (e ainda bem), a verdade é que nós continuamos a dançar na mesma, cegos para o mal que provocamos, e o bem que não estamos a fazer.